quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Morte nossa de cada dia

Como combinado, vou dar seguimento ao tema de “ser eternamente novo” explorando o tema da morte cotidiana; o momento em que nos permitimos abrir mão do passado para nos tornarmos outra pessoa. O termo morte é apropriado para definir este momento por que pode ser uma coisa dolorosa e lenta se formos apegados ao ser antigo e defasado que tem nos servido para nos relacionarmos com a sociedade até o presente momento; ou pode ser algo natural e rápido se encararmos a mudança de rumo como algo vital e vantajoso. A morte cotidiana é como a morte propriamente dita; é um abandono de tudo o que nos define.

Mas... o que te define? Você conhece todo o seu território interior?

Só podemos ter certeza de que abandonamos um lugar se soubermos exatamente onde são as suas fronteiras, não é mesmo?
A mudança passa pela abdicação do velho, o abandono do que não deve mais ser, do que deve passar a “ter sido”. E o abandono necessariamente passa pelo reconhecimento do território que se deseja abandonar. Se não for desta forma você pode achar que está partindo, mas corre o risco de estar andando em círculos, percorrendo partes diferentes dentro das mesmas fronteiras. Como você pode sair de um lugar se você não sabe que está lá? Como você poderia deixar de ser algo que você não sabe que é? Primeiro é preciso fazer o reconhecimento do terreno, saber o quão vasto ele é. Depois saber o quão amarrado você está a ele e, por último, cortar as amarras e seguir viagem.

É aí que começa a morte. Normalmente reconhecemos as amarras como parte de nós mesmos. Imaginamos que se cortarmos estas cordas iremos sangrar até morrer. Por isso morte é um termo apropriado para definir a impressão que temos desta mudança, mas não define a mudança propriamente dita, já que a transformação inclui a morte e o renascimento. Morrer é abrir mão de ser algo e, juntamente com isto, abdicar de todas as conveniências que este algo nos proporciona. Se fomos sempre os coitadinhos, teremos que abrir mão da piedade alheia; se fomos sempre os brutos, teremos que abrir mão do temor das pessoas. A transformação pode trazer evolução, mas esta tem um preço: a desacomodação.

Imagine-se um viajante, sempre de malas prontas para partir. As pessoas estão sempre te conhecendo. Cada vez que você se muda, você é novamente um desconhecido para os outros (e para você mesmo, já que as suas reações dependerão de onde você estará indo). Você carrega sempre uma bagagem leve de impressões, tradições e preconceitos, afinal de contas eles pesam; a trilha é longa e a locomoção é constante. É vital levar somente o essencial, o que é realmente útil. Se as armas e a agressividade de protegeram no mato, serão um peso desagradável num povoado pacífico. Se alguma pompa e enfeites foram úteis para acessar bairros ricos, nos humildes provocarão antipatia. Você deve estar pronto para vestir o que for necessário e tudo deve estar pronto para ser jogado fora.


Este tipo de morte, imaginamos que acontece em fases espaçadas de nossas vidas. De fato isto fica visível em alguns momentos críticos e importantes. Não notamos, porém, que todos os dias deixamos de abandonar corpos que pesam a todo instante ocultando nossas almas que deveriam trilhar o caminho da evolução leves e flexíveis. Se você precisa vestir a roupa de seriedade e sobriedade no trabalho, não precisa continuar com ela para encontrar seus filhos ou a pessoa que você ama. Fica difícil vestir uma roupa de amabilidade por cima desta sem parecer ríspido, falso ou até ridículo, não acha?

Não confunda as roupas que você veste com a sua própria pele. Não confunda sua pele com sua alma. Não confunda ferramentas de convívio social com essência pessoal. No início pode ser doloroso tirar as roupas que estão grudadas no corpo às vezes por anos. Pode ser difícil abrir a mão que segura a faca ou a vassoura há décadas. Pode parecer cansativo vestir o paletó cada vez que se entra no escritório e tirá-lo cada vez que se quer telefonar para casa para depois vesti-lo de novo ao retomar o trabalho. Mas com a prática começamos a perceber que a velocidade e o bem estar na sua caminhada dependem disso: de leveza e adequação perfeita com as circunstancias.
E o que é a vida se não uma constante caminhada?
Vida viva para todos.

Um comentário:

Ana Rosa disse...

Muito lindo seu texto Ju! Este é meu pensamento também. E quando vc escreve ou fala pra mim fica muito mais claro, tudo! Seria perfeito que todos os Junguianos lessem e refletissem sobre a Persona.(Jung)
A ilustração com os arcanos do tarot fez amplificar mais ainda esse símbolo para mim.
Você é sempre inspirada e inspiradora.
Luz,paz e amor!